Recentemente, a edição da Portaria MF 1.430/2025 pelo Ministério da Fazenda e suas implicações nas relações judiciais envolvendo a União têm gerado um intenso debate entre advogados, juristas e especialistas em direito tributário. A substituição da taxa Selic pelo IPCA para a correção de depósitos judiciais levanta questões relevantes sobre seus efeitos diretos aos contribuintes e a constitucionalidade dessa mudança. A nova norma, que foi fomentada pela Lei 14.973/2024, revogando a antiga Lei 9.703/1998, propõe uma alteração significativa nos parâmetros que regulam a atualização dos depósitos judiciais, o que pode, na análise de vários especialistas, promover um tratamento desigual entre a União e os cidadãos.
Os depósitos judiciais atuam como uma garantia em litígios que envolvem a administração pública, sendo fundamentais na discussão da validade de obrigações financeiras. Ao permitir que o depósito seja feito, evita-se a incidência de sanções contra a União, garantindo que, caso o contribuinte vença a ação, exista um capital disponível para ressarcir os valores devidos. Porém, a partir de 1º de janeiro de 2026, uma nova dinâmica será instaurada: todos os depósitos deverão ser realizados exclusivamente na Caixa Econômica Federal, com os valores repassados diretamente à Conta Única do Tesouro Nacional. Este controle centralizado do dinheiro poderá ter repercussões significativas para a gestão fiscal do Estado.
A atualização dos valores depositados, que agora será realizada com base no IPCA, suscita um debate considerável. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) historicamente apresenta uma taxa de correção inferior à da Selic em períodos de inflação e, portanto, pode ser considerada menos vantajosa para o contribuinte. Essa nova regra tende a desestimular o uso de depósitos judiciais como uma garantia, uma vez que a remuneração dos valores depositados não será mais equivalente ao que a União utiliza para os valores que ela recebe em atraso, que ainda assim continua sendo corrigido pela taxa Selic. Tal cerceio pode induzir a um aumento da judicialização, pois os contribuintes, diante de um cenário de insegurança e de potencial descompasso financeiro, tenderão a se resguardar judicialmente.
A substituição da Selic pelo IPCA ainda acentua o caráter indenizatório e não remuneratório dos depósitos. Esse fator levanta novas discussões jurídicas, especialmente no que diz respeito à incidência de tributos sobre a atualização desses valores. A interpretação que pode ser atribuída ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação à natureza da correção monetária das quantias depositadas nos processos judiciais é ainda um ponto controverso. O entendimento vigente indicava uma natureza remuneratória dos valores corrigidos pela Selic, propiciando, assim, um maior amparo aos devedores quando se tratava da atualização fiscal.
Um dos princípios basilares do Direito Tributário é a isonomia. Ao se implementar um sistema onde a correção dos depósitos judiciais é desproporcional àquela que ocorre com os valores recebidos pela União, a Portaria e a legislação que a embasa podem, sim, estar infringindo esse princípio. Estabelece-se, portanto, um tratamento potencialmente desigual, onde o contribuinte se vê em uma situação de desvantagem indesejada. Essa inconstitucionalidade já foi tema de diversas discussões em tribunais superiores, onde a aplicação de normas que distorçam os critérios de atualização monetária em detrimento dos contribuintes é frequentemente reavaliada.
Outra vertente de crítica à sistemática proposta pela Lei 14.973/2024 diz respeito ao fato de que a introdução do IPCA como índice de correção pode ser comparada à concessão de um “empréstimo subsidiado” ao governo federal. O raciocínio que fundamenta essa crítica é que, ao permitir que a Fazenda utilize os valores depositados sem pagar as taxas de mercado, e ao mesmo tempo apenas ajustar os mesmos segundo um índice inferior à Selic, promove-se uma benesse inerente ao Estado em detrimento do contribuinte. A dicotomia se torna ainda mais clara ao se analisar a diferença nas correções aplicadas ao longo do processo judiciário e ao efetivo levantamento do recurso pelo depositante.
A Lei 14.973/2024, além de modificar a correção de depósitos, confraterniza-se com práticas administrativas que, em última análise, podem criar distorções no sistema tributário e incentivo ao recolhimento antecipado para possível compensação. Os contribuintes, ao perceberem que a restituição de valores ocorreria com a aplicação da Selic, tenderiam a refletir sobre a conveniência de depositar judicialmente considerando o novo cenário. Essa reconfiguração pode possibilitar um aumento na arrecadação governamental a curto prazo, mas, contrariamente, poderá afetar a arrecadação líquida em um período mais extenso, quando as compensações começarem a ocorrer.
Dessa forma, é necessário que a comunidade jurídica mantenha um olhar atento e crítico sobre as implicações práticas da nova regulamentação. A previsão de um aumento da litigiosidade é um indicativo preocupante, sugerindo que uma potencial onda de ações judiciais pode surgir, visando questionar a adequação dessa norma à Constituição e a sua compatibilidade com princípios centrais do Direito Tributário, como a isonomia. Além disso, uma análise mais aprofundada sobre sua afetação do fluxo de caixa da União e o impacto na relação entre contribuintes e o Estado é fundamental, uma vez que a nova norma pode prejudicar a segurança jurídica que é essencial para a atividade econômica e a confiança nas instituições públicas.
Incontroversamente, a troca da Selic pelo IPCA para correção de depósitos judiciais é uma questão que se impõe ao debate dentro da advocacia e não somente no âmbito acerca das relações tributárias. A incidência de tributos sobre valores que serão atualizados pelo IPCA é uma questão que poderá despertar a análise do STF, na busca por reconstruir um entendimento mais equilibrado e justo que não prejudique os direitos dos cidadãos frente à máquina estatal.
O papel da advocacia nesse cenário é crucial; cabe a nós, operadores do direito, orientar nossos clientes em relação ao que esta mudança representa, não apenas em termos de cálculos financeiros, mas também no que tange a possíveis consequências jurídicas. O enfoque deve ser em estratégias que considerem não somente o planejamento tributário, mas, também, considerações processuais que podem - e devem - ser levadas ao judiciário frente a tão drásticas alterações legislativas.
Em suma, é imperativo que continuemos a discutir essas reformas, suas implicações e promover uma maior compreensão sobre os direitos dos contribuintes. O equilíbrio entre os interesses do Estado e os direitos fundamentais dos cidadãos deve ser sempre buscado, respeitando os princípios consagrados na Constituição e visando um sistema justo e equitativo para todos os envolvidos.