Participação social na regulação: por que o problema não é falta de consulta, mas de regras

Nos últimos anos a participação social tem se consolidado como elemento central dos processos regulatórios no Brasil. Consultas e audiências públicas tornaram‑se práticas comuns nas agências reguladoras e, mais recentemente, em órgãos com poder normativo. Embora a quantidade de instrumentos aumente, a efetividade democrática desses mecanismos ainda é limitada. O desafio não é a ausência de oportunidades, mas sim a forma como a participação está institucionalmente estruturada.



Um caso ilustrativo aconteceu em 2015, quando a Anvisa abriu consulta pública para a proibição do agrotóxico carbofurano, já banido em vários países. Durante quase todo o período de consulta poucos cidadãos se manifestaram. Somente no último dia, após uma campanha nas redes sociais, milhares de pessoas enviaram mensagens padronizadas em favor da proibição. O relatório final da agência respondeu apenas às contribuições consideradas técnicas, ignorando a mobilização popular e dialogando extensamente com a indústria regulada. O banimento foi mantido, mas as alterações incorporadas atenderam exclusivamente às demandas empresariais.



Esse episódio reflete um padrão recorrente: baixa participação na maioria dos temas, explosões pontuais de engajamento em assuntos de grande visibilidade e pouca influência real sobre as decisões. Nos cenários em que a participação ocorre, os grupos mais organizados exercem influência desproporcional, enquanto cidadãos comuns e grupos menos estruturados permanecem marginalizados.



Parte desse problema está no desenho institucional da participação social no Brasil. Desde a criação das agências reguladoras, no final dos anos 1990, a consulta pública foi concebida como instrumento obrigatório apenas em fases avançadas do processo normativo, quando a minuta já está quase concluída. A Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019) reforçou esse modelo, mantendo a participação facultativa nas etapas iniciais do ciclo regulatório – justamente quando a influência dos interessados é maior.



Estudos empíricos confirmam que mais de 70% dos mecanismos participativos são realizados após a redação da minuta normativa. Quando a participação ocorre antes, durante a definição de problemas, objetivos e alternativas regulatórias, as taxas de acolhimento das contribuições são significativamente mais altas. Mesmo assim, esses mecanismos iniciais são pouco utilizados e mal regulamentados.



A fragmentação normativa agrava a situação. Além das consultas previstas em lei, as agências utilizam uma miríade de instrumentos – tomadas de subsídios, consultas setoriais, consultas prévias, E‑participa, reuniões técnicas, diálogos setoriais – com procedimentos, prazos e graus de transparência muito distintos. A ausência de nomenclatura uniforme e de regras mínimas cria insegurança, dificulta o acesso de novos participantes e favorece quem já domina os códigos institucionais da regulação.



Os prazos exíguos são outro obstáculo. Enquanto a legislação fixa mínimo de 45 dias para consultas públicas de minutas normativas, mecanismos utilizados em fases anteriores – como tomadas de subsídios para agendas regulatórias ou análises de impacto – frequentemente duram menos de um mês. Em alguns casos, estudos técnicos complexos são submetidos à participação social por períodos incompatíveis com qualquer análise qualificada, transformando a participação em mera formalidade.



Há ainda um déficit significativo de transparência e responsividade. Fora do âmbito das consultas formais, os órgãos reguladores raramente oferecem respostas às contribuições recebidas. A ausência de retorno enfraquece o caráter deliberativo da participação e desestimula o engajamento futuro, inclusive de atores especializados. Sem diálogo, não há deliberação.



Em face desse cenário, defendemos a necessidade de um marco normativo geral que sistematize os mecanismos de participação social ao longo de todo o ciclo regulatório. A proposta não visa engessar a atuação dos reguladores, mas estabelecer parâmetros mínimos de previsibilidade, inclusão e transparência. Entre as recomendações centrais estão: uniformização da nomenclatura dos mecanismos participativos; fixação de prazos mínimos adequados também para a coleta de informações em fases iniciais; exigência de critérios claros e publicidade nas participações restritas a convidados; ampliação do dever de resposta para todas as modalidades de participação, ainda que sem caráter vinculante.



Experiências internacionais mostram que esse caminho é viável. Na União Europeia, por exemplo, os processos de “call for evidence” realizados antes da elaboração de propostas normativas possuem prazos mais longos do que as consultas sobre textos já finalizados e sempre geram relatórios públicos de resposta. Transparência e responsividade são tratadas como condições essenciais da boa regulação.



Mais do que um ajuste procedimental, a sistematização da participação social é uma estratégia democrática. Ao ampliar as oportunidades de intervenção qualificada, reduzir as assimetrias de acesso e fortalecer o diálogo entre Estado e sociedade, a regulação ganha legitimidade, qualidade e confiança pública. Sem regras claras, a participação tende a reforçar desigualdades; com instituições bem desenhadas, ela pode cumprir sua promessa de democratizar a produção do direito regulatório.



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Participação social na regulação: por que o problema não é falta de consulta, mas de regras
Rannyelly Alencar Paiva December 30, 2025
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