Sócio invisível: cumulação de direitos após fim da sociedade conjugal

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do REsp 2.223.719-SP, reconheceu que um ex‑cônjuge que não é sócio de uma sociedade pode participar da distribuição de lucros e dividendos correspondentes às cotas sociais comuns até a apuração definitiva dos haveres e pagamento do valor patrimonial das cotas. A decisão acende um debate sobre a extensão dos direitos patrimoniais do ex‑cônjuge em relação a uma empresa da qual ele não detém participação societária.



O entendimento traz uma lógica de proteção que, segundo a jurisprudência, visa resguardar a parte considerada mais vulnerável em litígios de família. Contudo, a aplicação prática revela uma cumulatividade de direitos que pode gerar desigualdade patrimonial. Se o ex‑cônjuge tem direito à partilha dos haveres na data da separação, ao mesmo tempo que continua a receber lucros posteriores, ele ocupa uma posição privilegiada, atuando como “credor invisível” ou “sócio oculto”. Nesse cenário, a pessoa não participa da vida empresarial, não responde por obrigações nem assume riscos, mas usufrui de benefícios econômicos maiores que os do sócio.



Tal situação é análoga a um imóvel comum: atribuir metade do valor ao ex‑cônjuge na separação e, simultaneamente, permitir que ele continue a receber aluguéis após a data do rompimento. O duplo benefício sem correspondência de ônus viola a lógica de equilíbrio patrimonial que o instituto da separação de fato pretende preservar.



No contexto societário, a extensão do direito à percepção de frutos pode criar uma figura de credor permanente. Como a apuração de haveres pode levar anos, o ex‑cônjuge pode receber rendimentos sem vínculo direto com a sociedade ou com o ex‑cônjuge, inclusive com incidência de juros. A analogia com o condomínio, que tem sido aplicada em alguns processos, sugere que a apuração de haveres encerra a indivisão patrimonial, extinguindo o “condomínio” sobre as quotas sociais. Assim, a data-base para a apuração corresponde à separação de fato, definindo o limite temporal de todos os direitos patrimoniais, inclusive os de participação societária comum.



Permitir a percepção de frutos além dessa data-base abre um precedente perigoso. Se os lucros posteriores fossem incluídos, seria necessário discutir se eventuais prejuízos futuros deveriam ser partilhados ou abatidos dos haveres. Essa elasticidade fragiliza a previsibilidade jurídica e desvirtuaria a função delimitadora da data de separação, que foi criada justamente para fixar limites objetivos à comunhão de bens.



Para evitar enriquecimento sem causa, a relação patrimonial entre ex‑cônjuges deve ser simétrica. A distribuição de lucros como mera antecipação do valor a ser apurado, com compensação posterior nos haveres, não se verifica na prática. Reconhecer a percepção de lucros sem abatimento atribui ao ex‑cônjuge dois direitos autônomos e cumulativos: o recebimento dos haveres e a fruição dos lucros, o que desvirtua a lógica do instituto.



Embora a demora na apuração de haveres possa ser justificada por litigância de má‑fé ou outros motivos, isso não justifica a manutenção do direito à percepção de lucros após a separação de fato. Tal direito deve ser compensado apenas por correção monetária, juros legais ou contratuais, sem extensão da participação nos lucros posteriores.



A discussão ganha força quando se observa a evolução legislativa em hipóteses análogas, como o direito dos herdeiros ao recebimento de lucros após falecimento de sócio. O artigo 608 do Código de Processo Civil estabelece que, até a data da resolução, os lucros integram o valor devido ao herdeiro; após essa data, o direito restringe‑se à correção monetária e aos juros. A legislação processual buscou evitar a perpetuação de subsociedades patrimoniais indefinidas, justamente o efeito colateral que parte da jurisprudência acaba por reforçar ao reconhecer o duplo direito aos ex‑cônjuges.



Durante as discussões do anteprojeto de reforma do Código Civil, a questão do abatimento dos lucros gerou intenso debate. A redação final deixou a matéria em aberto, mantendo a controvérsia. A solução mais adequada seria prever que eventuais lucros recebidos pelo ex‑cônjuge após a separação de fato sejam compensados nos haveres, evitando a cumulação indevida de direitos e preservando a integridade econômica de ambas as partes.



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Sócio invisível: cumulação de direitos após fim da sociedade conjugal
Rannyelly Alencar Paiva 30 de outubro de 2025
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