O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.792.271/SP, reafirmou a distinção entre fraude contra credores e desconsideração da personalidade jurídica, afastando a prática de reconhecer a fraude incidentalmente em processos de execução. O tribunal insistiu na necessidade de coerência entre o direito material e processual, declarando que a tutela do crédito não pode ser usada para abreviar procedimentos e desnaturar institutos jurídicos.
Historicamente, a doutrina de Rubens Requião introduziu a desconsideração como meio de combater abusos e fraudes, permitindo ao juiz “penetrar o véu” da pessoa jurídica para coibir manobras ilícitas. Posteriormente, Fábio Konder Comparato enfatizou que a desconsideração deve ser vista como consequência de um desvio de função, não necessariamente ligado a fraude. O Código Civil de 2002 consolidou o conceito de abuso de direito, mas não mencionou fraude, afastando a exigência de dolo. A Medida Provisória 881/2019, após debate, retirou o termo doloso e manteve a ideia de lesão a credores sem exigir intenção ilícita.
Apesar desse marco legal, tribunais frequentemente confundem a fraude contra credores com a desconsideração, tratando a primeira como um mero “súmula” dentro do incidente de desconsideração. Tal prática viola a distinção funcional entre os institutos. A fraude contra credores exige a existência de insolvência e um ato de disposição patrimonial que prejudica um credor pré-existente, sendo combatida por meio da ação pauliana, que invalida o ato jurídico e produz efeitos ex tunc e erga omnes. Em contraste, a desconsideração é um incidente processual que apenas desnuda o véu da personalidade societária para que o sócio ou administrador responda por obrigação específica, tendo efeitos apenas entre as partes litigantes e sem alcançar terceiros.
Proceduralmente, a ação pauliana segue o rito comum, enquanto a desconsideração pode ser alegada como questão prejudicial ou em incidente próprio. A desconsideração requer vínculo societário entre o sócio ou administrador e a sociedade; a fraude contra credores não depende de tal vínculo. Quanto ao prazo, o artigo 178, inciso II, do Código Civil estabelece decadência de quatro anos para a anulação de vício, enquanto a desconsideração não possui prazo prescricional, permitindo sua proposição a qualquer tempo. Assim, reconhecer fraude contra credores em incidente de desconsideração já ultrapassa o prazo decadencial e fere o artigo 178, comprometendo a segurança jurídica.
O acórdão do STJ, ao reformar decisão que havia reconhecido a desconsideração em caso claro de fraude contra credores, apontou quatro pontos essenciais: (i) a fraude contra credores pressupõe a ação pauliana e não pode ser declarada incidentalmente em execução; (ii) o tribunal de origem violou o devido processo legal ao reconhecer fraude sem observar o procedimento previsto; (iii) a desconsideração não pode ser usada para criar uma nova espécie de fraude contra credores fora do artigo 50 do Código Civil; (iv) a responsabilidade de filhos por obrigações dos pais não pode ser atribuída via desconsideração.
Em síntese, o STJ reafirmou que a fraude contra credores deve ser arguida em ação própria, a ação pauliana, e que a desconsideração da personalidade jurídica permanece um instrumento restrito a hipóteses expressamente previstas em lei. Essa decisão impede a criação de atalhos jurisprudenciais que comprometam a distinção conceitual e a integridade das garantias processuais, preservando a efetividade executiva sem deformar categorias jurídicas.
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